BIBLIA
Asherah, a Deusa
Proibida
Ana Luísa Alves Cordeiro
Para a maioria das
pessoas que lêem a Bíblia, a idéia de um único Deus de Israel, Yahweh, parece ser clara. No entanto, descobertas
arqueológicas das últimas décadas vem demonstrando que Yahweh nem sempre esteve solitário. Antes da ascensão do
monoteísmo em Israel, o Deus Yahweh fazia parte de
um contexto politeísta onde havia um panteão de Deuses e Deusas, sendo que
provavelmente foi adorado ao lado de sua consorte, Asherah.
Reconstruir a presença da Deusa Asherah na vida de
mulheres e homens no Antigo Israel é um esforço de, a partir de uma
perspectiva feminista e de gênero, trazer elementos
que nos ajudem numa maior aproximação do que foram os espaços religiosos e
vitais deste povo. Esta reconstrução é algo necessário, uma vez que estamos
diante de textos sagrados marcados pelo sistema patriarcal que projetou historicamente um Deus masculino, legitimando
práticas e funções masculinas, com isso silenciando as mulheres, suas
representações sagradas, tudo aquilo que pudesse lhes garantir espaço e voz.
Por isso, faz-se necessário a nossa reflexão.
“voltar
a um ponto anterior ao monoteísmo patriarcal, até religiões nas quais uma
Deusa era a imagem divina dominante ou então era emparelhada com a imagem
masculina de uma forma que tornava a ambas modos equivalentes de aprender o
divino" (Ruether, 1993, p.
46).
Carol Christ (2005, p.17)
ressalta que “re-imaginar o poder divino como Deusa
tem importantes conseqüências psicológicas e
políticas”, como caminho de desconstrução do
pensamento que naturaliza a dominação masculina. Segundo Schroer
(1995, p. 40), o culto à Deusa era exercido tanto
por homens como por mulheres, mas veio sobretudo ao encontro das necessidades
das mulheres, pois lhes oferecia mais espaço no âmbito religioso.
Através de uma “hermenêutica feminista de suspeita”, método proposto por
Elisabeth Schüssler Fiorenza
(1992, p. 89), queremos “re-imaginar”
Asherah a partir de uma crítica ao patriarcado
presente nos textos bíblicos, reconstruindo a memória da Deusa a partir dos
dados arqueológicos e identificando na literatura bíblica a relação
conflituosa que se estabelece com ela.
As
origens do monoteísmo no Antigo Israel
Há uma grande problemática em torno do início do monoteísmo. Frank Crüsemann (2001, p. 780) aponta a época do profeta Elias (cf. 1Rs
18,19-40) como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade
do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal
e no processo de sincretismo onde Yahweh incorpora
as características de Baal. Os escritos bíblicos do
Primeiro Testamento teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a
realidade do monoteísmo, “a proibição de se adorar outras divindades já é
pressuposta em Gênesis e formulada claramente no
Sinai (Ex 20,2)” (Crüsemann,
2001, p. 781).
Haroldo Reimer (2006,
p.115) aponta, sobretudo o século V a.E.C como o
momento histórico marcante, em que Yahweh vai se
constituindo como Deus único de Israel, desencadeando um “processo de diabolização de outras divindades”.
Num primeiro momento, a divindade Yahweh teria sido
um elemento religioso que veio de fora do contexto cananeu.
Nesta época, possivelmente era o Deus El que
ocupava a cabeça do panteão divino. Yahweh passa a
integrar o contexto israelita sem contudo negar a existência e diversidade de
outras divindades.
No entanto, os conflitos religiosos começam a acontecer,
sobretudo no Reino do Norte, no período que vai dos séculos IX a VIII a.E.C, com o Deus Baal,
ocorrendo a transferência dos atributos da fertilidade de Baal
para Yahweh, o que Crüsemann
também aponta. Já no Reino do Sul, do final do século VIII até o final do
século VII a.E.C, “a fé monoteísta javista é afirmada em um contexto nacionalista, na medida
em que se pode retrojetar a idéia de nação para
aqueles tempos. A diversidade religiosa passa a ser objeto
de ações perseguidoras oficiais” (Reimer, 2006, p. 117).
A afirmação da exclusividade de Yahweh acarreta um
processo de “diabolização” da própria Deusa Asherah, onde textos bíblicos serão instrumentos de
justificação deste processo monoteísta. Frente a essa exclusividade de Yahweh, será impossível a
sobrevivência de qualquer outra divindade, além de que a ênfase em Yahweh será critério de afirmação do sacerdócio masculino
perpetuando uma sociedade patriarcal (Reimer, 2006,
p. 117).
Neste contexto, a existência de outras divindades masculinas e femininas foi
sempre uma ameaça ao monoteísmo estabelecido, sendo que as reformas
religiosas em Judá, de Josafá (870-848 a.E.C), de Ezequias (716-687 a.E.C), de Josias (640-609 a.E.C) e as legislações do Código da Aliança (Ex 20,22-23,19) e do Código Deuteronômico
(Dt 12-26) agiram como instrumentos que visavam
assegurar a fé monoteísta (Reimer, 2003, p. 968).
A presença da Deusa em Israel (do
Bronze ao Ferro)
Conforme a pesquisadora Monika
Ottermann (2004), que traça o panorama da presença
da Deusa em Israel, da Idade do Bronze à Idade do Ferro, no Oriente Médio,
datando a Idade do Bronze Médio (1800-1500 a.E.C),
a representação da Deusa é caracterizada como “Deusa-Nua”,
destacando o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de
ramos ou pequenas árvores estilizadas, combinação que vem a ser denominada “Deusa-Árvore”.
Na Idade do Bronze Tardio (1550-1250/1150 a.E.C), a Deusa-Árvore
apresenta duas mudanças, aparecendo em forma de uma árvore sagrada flanqueada
por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore. Neste
período, já se nota a tendência de substituição do corpo da Deusa pelos seus
atributos, em especial a árvore.
A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde
divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de
características dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I
(1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore
vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às
vezes com a presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços
na glíptica, significando a prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa
fica relegada aos espaços de religiosidade das mulheres.
Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C),
início da formação do javismo as Deusas passam a
ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com
seu símbolo, a árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por
ele. Entendemos essas imagens como representações da Deusa Asherah.
Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e
Judá apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de Kuntillet Adjrud e de Khirbet el-Qom destacam um
vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo demonstra um contexto
politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas.
Na Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e
Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o
ramo. Vários selos ou impressões de selos que associam símbolos astrais com
árvores estilizadas foram encontrados na Palestina e na Transjordânia,
o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa Asherah ao lado do Deus Yahweh.
É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de séculos, Asherah esteve presente em Israel.
Evidências arqueológicas
da Deusa Asherah
As primeiras evidências de Asherah
aparecem em textos cuneiformes babilônicos (1830-1531
a.E.C) e nas cartas de El
Armana (século XIV a.E.C)
(Neuenfeldt, 1999, p. 5).
Para o pesquisador Ruth Hestrin (1991, p. 52-53), informações importantes sobre Asherah vêm dos textos ugaríticos
de Ras Shamra (Costa
Mediterrânea da Síria). Nestes textos, Asherah é
chamada de Atirat, consorte de El,
principal Deus do panteão cananeu no II milênio a.E.C, sendo mencionada
também como ‘Elat, forma feminina de El. Nos textos ugaríticos, Asherah (ou seja, Atirat ou ‘Elat) é a mãe dos Deuses, simbolizando a Deusa do amor,
do sexo e da fertilidade.
Também foram escavados vários pingentes ugaríticos que retratam uma Deusa, provavelmente Atirat/ ‘Elat. A figura humana
estilizada nestes pingentes contém o rosto, os seios e a região púbica e uma
pequena árvore estilizada gravada acima do triângulo púbico.
Em 1934, o arqueólogo britânico James L. Starkey encontrou o jarro de Lachish,
datado aproximadamente no 13º século a.E.C,
provavelmente ano 1220.
O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo
alfabeto semítico. Na decoração há o desenho de uma árvore flanqueada por
duas cabras com longos chifres para trás, que, segundo Ruth Hestrin, representa Asherah.
Uma inscrição que segue pela borda do jarro tem sido reconstruída e traduzida
por Frank M. Cross, como:
“Mattan. Um oferecimento para minha senhora 'Elat”.
Não se sabe quem é Mattan, mas está claro que ele
faz uma oferenda para 'Elat, que é o feminino para El, chefe do panteão cananeu no
II milênio a.E.C,
equivalente ao pré-bíblico Asherah. Nota-se um dado
importante, o nome 'Elat está escrito logo acima da
árvore, representação de 'Elat/ Asherah.
Há uma possibilidade deste jarro e seu conteúdo terem sido uma oferenda à
Deusa (Hestrin, 1991, p.
54).
No entanto, foi no templo de Arad,
no Neguev, ao sul de Jerusalém, que se encontrou
fortes evidências de Asherah. No santuário interno
foram encontrados dois altares diante de um par de pedras verticais,
possivelmente lugar de culto a Yahweh e Asherah. Um outro altar foi encontrado
no pátio externo do templo com tigelas dos sacerdotes e cinzas de ossos de
animais queimados, no canto uma irmandade local e altares com pedras duplas (Discovery, 1993). Segundo Elaine
Neuenfeldt (1999, p. 6),
o templo é datado aproximadamente da época do Bronze Recente, entre o 10º e 8º
séculos a.E.C., quando possivelmente a reforma de Ezequias o extinguiu (2Rs 18).
Em Khirbet el-Qom, ao
oeste de Hebron, em 1967, outro arqueólogo
encontrou um túmulo judaico da segunda metade do século VIII (Discovery, 1993), com uma inscrição na parede interior
que Croatto (2001, p. 36)
traduz como:
“1. Urijahu
[...] sua inscrição.
2. Abençoado seja Urijahu
por Javé (lyhwh)
3. sua luz por
Asherah, a que mantém sua mão sobre ele
4. por sua rpy, que...”
Segundo Hestrin, em 1975-1976,
o arqueólogo israelita Ze’ev Meshel,
em Kuntillet Adjrud, 50km
ao sul de Qadesh-Barnea, na antiga estrada de Gaza
a Elat, escavou uma pousada no deserto que continha
várias inscrições. Controlado por Israel, este posto estatal encontrava-se em
território de Judá, funcionando aproximadamente entre 800-775 a.E.C. No prédio principal, em sua entrada, duas jarras
de armazenagem com desenhos e inscrições foram encontradas e identificadas
como pithos A e pithos B.
Na inscrição do pithos A se lê:
“Diz... Diga a Jehallel...
Josafa e...”:
Abençoo-vos em YHWH de Samaria e sua Asherah”.
No pithos B se lê:
“Diz Amarjahu: Diga ao meu Senhor: Estás bem?”.
Abençoo-te em YHWH de Teman e sua Asherah.
Ele te abençoa e te guarde e com meu senhor ”.
Neste pithos aparecem três figuras, duas masculinas
retratos do Deus egípcio Bes e uma claramente
feminina (seios em destaque) tocando uma lira.
Em 1968, o arqueólogo americano Paul Lapp
escavou um outro artefato muito famoso em Taanach, datando ao final do 10º século a.E.C (Hestrin, 1991, p. 57). Num dos quartos da instalação cúltica
foram encontrados prensa de óleo, forma para fazer figuras de Asherah, sessenta pesos de tear e 140 ossos de
articulações de ovelhas e cabras (Neuenfeldt, 1999,
p. 7).
Um quadrado oco de terracota, aberto na base, composto de quatro níveis ou
róis também foi encontrado. Conforme Ruth Hestrin
(1991, p. 57-58), no rol inferior, uma mulher nua
flanqueada por dois leões é mais uma representação de Asherah,
Deusa-mãe. No segundo rol temos uma abertura vazia no meio (provavelmente a entrada do templo) flanqueada por
duas esfinges (corpo de leão, asas de pássaros e cabeça de mulher). O
terceiro rol traz uma árvore sagrada da qual saem três pares de galhos,
simbolizando a Deusa principal, Asherah, consorte
de Baal e fonte da fertilidade, sendo flanqueada
possivelmente por duas leoas. No rol superior temos um touro sem chifres, com
um disco de sol em cima, o que simboliza o Deus supremo não só na Mesopotâmia
e no panteão hitita, como também no panteão cananeu. O jovem touro representa Baal,
principal Deus do panteão cananeu, que no II milênio substituiu El, cabeça
do panteão.
Em 1960, a arqueóloga inglesa Kathyn
Kenyon descobriu centenas de estatuetas femininas
quebradas em uma caverna perto do templo de Salomão em Jerusalém, para vários
estudiosos essa descoberta sinalizou a existência do templo, para outros
determinou o fim dos cultos pagãos pelo rei Josias,
o qual ordenou a destruição de todos os vasos feitos para Baal
e Asherah (Discovery,
1993).
Portanto, Asherah quase sempre foi adorada sob o
corpo de uma árvore, seu culto era principalmente realizado ao redor de uma
árvore natural ou estilizada, de um poste sagrado que podia estar ao lado de
um altar seu ou de outra divindade.
“Porém, seu culto foi realizado, de
preferência, debaixo de uma árvore natural, nos chamados 'lugares
altos', santuários ao ar vivo no topo das colinas e
montanhas. Na maioria do tempo, uma imagem ou símbolo de Asherah
estava também presente dentro do próprio templo de Jerusalém" (Ottermann, 2005, p. 49).
Deusa Asherah: uma imagem a partir dos escritos bíblicos
Conforme Ruth Hestrin (1991, p. 50), Asherah é mencionada
cerca de 40 vezes na Bíblia Hebraica, de três formas diferentes, ora como uma
imagem que representa a própria Deusa, ora como uma árvore ou como um tronco
de árvore, que a simbolizam.
O culto a Asherah foi muito popular em Israel e
Judá. O rei Asa (912-871 a.E.C), que ficou no poder
durante 41 anos em Judá, empreendeu uma restauração no culto a Yahweh e “chegou a retirar de sua mãe a dignidade de
Grande Dama, porque ela fizera um ídolo para Aserá; Asa quebrou o ídolo e
queimou-o no vale do Cedron” (1Rs 15,13; cf. 2Cr
15,16). O ídolo remete na palavra hebraica mifleset,
a algum objeto de culto, provavelmente de madeira.
É interessante perceber que o culto se dá no palácio, em ambiente oficial (Croatto, 2001, p. 40-41). Já na
passagem de 1Rs 16,33 “Acab erigiu também um poste
sagrado...” demonstrando que Asherah também foi
adorada em Israel.
Em 2Cr 14,1-2, onde o rei Asa é lembrado como o rei que fez o que é “bom e
justo aos olhos de Yahweh, seu Deus”, exatamente porque “eliminou os altares do estrangeiro e
os lugares altos, despedaçou as estelas, destruiu as aserás...”
ordenando o povo a praticar a lei e os mandamentos de Yahweh
(cf. Jz 3,7).
Refletindo sobre os textos bíblicos que mencionam a
Deusa Asherah teremos como pano de fundo o contexto
que Silvia Schroer tão
bem elucida,
“os/as repatriados/as da Babilônia tinham integrado a questão da culpa de tal
maneira que consideravam sobretudo o culto às deusas como motivo da ruína de
Israel. Os expoentes deste grupo conseguiram banir de Judá quase
completamente o culto às deusas dentro de um século e de apagar, o máximo
possível, as memórias dele. Não é por acaso que o culto clandestino à deusa
acontece no contexto de proibições misóginas e xenófobas de casamentos
mistos. Todas as tentativas que seguem, de integrar a deusa pelo menos na
linguagem teológica, são tentativas assentadas dentro do sistema monoteísta” (Schroer, 1995, p.
40).
A partir desta perspectiva, de demonização
da Deusa ou das Deusas, Asherah passa a se tornar a
Deusa proibida, a causa dos males e da ruína de Israel.
A marginalização do feminino, das mulheres é um processo que também se dá e
se sustenta por meio de escritos bíblicos justificadores de uma sociedade
patriarcal, atuando assim no que podemos chamar de
“desempoderamento” das mulheres a partir do
sagrado, o que trouxe e traz fortes impactos nas dimensões culturais,
religiosas, sociais, econômicas e políticas.
Há uma preocupação dos redatores bíblicos de
excluir qualquer suspeita da Deusa Asherah ao lado
de Yahweh, como sua consorte. No entanto, as
inúmeras citações sobre Asherah demonstram seu peso
no contexto religioso e isso fez dela uma grande ameaça ao monoteísmo javista em ascensão.
O rei Josafá (871-848 a.E.C), filho e sucessor do rei Asa, deu continuidade à
política de seu pai, “Yahweh manteve o reino em
suas mãos” (2Cr 17,5), pois “seu coração caminhou nas sendas de Yahweh e ele suprimiu de novo em Judá os lugares altos e
as aserás” (2Cr 17,6). Em outra passagem, Josafá após combater contra Aram, apesar de ferido, volta
com vida para Jerusalém sendo aclamado por Jeú, o
vidente,
“deve-se levar
auxílio ao ímpio? Amarias aqueles que odeiam Yahweh,
para assim atrair sobre ti sua cólera? Todavia, foi encontrado em ti algo de
bom, pois eliminaste da terra as aserás e aplicaste
teu coração à procura de Deus” (2Cr 19,3).
Ezequias (727-698 a.E.C),
filho e sucessor de Acaz, é lembrado como o rei que
“fez o que é agradável aos olhos de Yahweh”.
Durante o seu reinado, após a celebração da Páscoa e da festa dos Ázimos é
empreendida uma reforma do culto,
“terminadas
todas essas festas, todo o Israel que lá se achava saiu pelas cidades de Judá
quebrando as estelas, despedaçando as aserás,
demolindo os lugares altos e os altares, para eliminá-los por completo de
todo o Judá, Benjamim, Efraim e Manassés.
A seguir, todos os israelitas voltaram para suas cidades, cada um para seu patrimônio” (2Cr 31,1).
Nesta época o Reino do Norte, Israel, já havia sido destruído, sendo assim,
Judá, Reino do Sul, tornou-se o único espaço onde a identidade religiosa do
povo de Yahweh poderia ser mantida. Foi nesse
contexto que Ezequias promoveu uma extensa reforma
religiosa e política, com intenções de reunir o povo em torno de um só Deus e
um só rei. Por isso, Ezequias é exaltado pelos redatores deuteronomistas como
o rei que “fez o que agrada aos olhos de Yahweh”
(2Rs 18,3). A reforma religiosa de Ezequias era
baseada nas seguintes medidas: no combate a idolatria, na centralização do
culto a Yahweh em Jerusalém e no cumprimento dos
mandamentos. Tais medidas podem ter sido fundamentadas no documento trazido
do Norte (Dt 12-26), que foi adaptado à reforma em
Judá. Josias retoma 100 anos mais tarde este
documento para empreender sua reforma religiosa e política (Gass, 2005, p. 78-83).
O rei Manassés (698-643 a.E.C), filho e sucessor de Ezequias,
é lembrado pelos redatores como um rei que “fez mal
aos olhos de Yahweh”, justamente porque reconstruiu
os lugares altos que seu pai havia destruído, ergueu altares para os baais e fabricou postes sagrados, prestando-lhes culto.
No entanto, foi construir altares dentro do Templo de Yahweh
(2Rs 21,7) a maior abominação para os redatores,
que ao final dos escritos sobre Manassés relatam
sua conversão a Yahweh. “Sua oração e como foi
ouvido, todos os seus pecados e sua impiedade, os sítios onde havia
construído os lugares altos e erguido aserás e
ídolos antes de se ter humilhado, tudo está consignado na história de Hozai” (2Cr 33,19).
O rei Josias (640-609 a.E.C)
empreendeu uma reforma a partir de 622 a.E.C
fazendo de Jerusalém o centro político e religioso de seu estado, destruindo
os santuários de Yahweh que havia no interior e
acabando com os cultos cananeus e assírios, que
aconteciam no templo de Jerusalém e nos lugares altos. A reforma de Josias atingiu a liberdade religiosa popular, pois
ordenou
“a Helcias, o sumo sacerdote, aos sacerdotes que ocupavam o
segundo lugar e aos guardas das portas que retirassem do santuário de Yahweh todos os objetos de
culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá
e para todo o exército do céu, queimou-os fora de Jerusalém, nos campos do Cedron e levou suas cinzas para Betel”
(2Rs 23,4).
com isso, o culto exclusivo a Yahweh
é reafirmado pela corte e pela classe sacerdotal de Jerusalém, exclusividade
que custou caro à religiosidade popular (Gass,
2005, p. 134-138).
Josias ainda “demoliu as casas dos prostitutos sagrados, que estavam no
templo de Yahweh, onde as mulheres teciam véus para
Aserá” (2Rs 23,7). Aqui provavelmente se trata de vestidos feitos para a
estátua de Asherah (Croatto,
2001, p. 41).
As intenções daqueles que redigiram tais textos parecem claras, ou seja,
querem demonstrar que o “bom e justo” rei e povo é aquele que elimina
qualquer resquício da presença de outros Deuses e Deusas em Israel, que o rei
ou povo que “faz mal aos olhos de Yahweh” seria
justamente aquele que aceita a realidade politeísta.
Na citação a seguir além de derrubar, despedaçar e reduzir a pó os altares, Josias manda espalhar este pó sobre o túmulo dos que
ofereciam sacrifício a Baal e Asherah,
ou seja, está explicíto que pessoas foram
assassinadas. Aqui o nome Asherah aparece no
plural,
“no oitavo ano de seu
reinado, quando ainda não era mais que um adolescente, começou a buscar ao
Deus de Davi, seu antepassado. No décimo segundo
ano de seu reinado, começou a purificar Judá e Jerusalém dos lugares altos,
das aserás, dos ídolos de madeira ou de metal
fundido. Derrubaram diante dele os altares dos baais,
ele próprio demoliu os altares de incensos que estavam sobre eles, despedaçou
as aserás, os ídolos de madeira ou de metal
fundido, e tendo-os reduzido a pó, espalhou o pó sobre os túmulos dos que
lhes ofereceram sacrifícios (...) Nas cidades de Manassés,
de Efraim, de Simeão e
também de Neftali e nos territórios devastados que
os rodeavam, ele demoliu os altares, as aserás,
quebrou e pulverizou os ídolos, derrubou os altares de incenso em toda a
terra de Israel e depois voltou para Jerusalém” (2Cr 34,3-4.6-7).
Em Is 27,9 a Deusa Asherah é taxada de forma
explícita como o pecado de Israel, a causa de sua iniqüidade
e ruína, devendo ser banida por completo,
“porque, com
isto, será expiada a iniqüidade de Jacó. Este será o fruto que ele há de recolher da
renúncia ao seu pecado, quando reduzir todas as pedras do altar a pedaços,
como pedras de calcário, quando as Aserás e os
altares de incenso já não permanecerem de pé”.
Está claro que a ascensão do culto exclusivo a Yahweh não se faz de forma tranqüila,
mas de forma violenta, a partir da intolerância religiosa, da destruição e da
eliminação por completo do outro, que se torna uma ameaça.
A proibição “não plantarás um poste sagrado ou qualquer árvore ao lado de um
altar de Yahweh teu Deus que hajas feito para ti,
nem levantarás uma estela, porque Yahweh teu Deus a
odeia” (Dt 16-21-22), conforme Croatto
(2001, p.42), revela que o objeto que simboliza Asherah é feito de madeira, que está plantado, ou seja, é
um poste ou uma estaca e não uma estátua, que sua colocação “ao lado de um
altar de Yahweh” transparece o caráter
cultual do símbolo e principalmente a associação da
Deusa simbolizada junto com o próprio Yahweh.
Acab (874-853 a.E.C) construiu um templo de Baal para sua esposa fenícia, “erigiu também um poste
sagrado e cometeu ainda outros pecados, irritando Yahweh,
Deus de Israel, mais que todos os reis de Israel que o precederam” (1Rs
16,33).
Os redatores deuteronomistas
se queixam que na época do rei Joacaz (813-797 a.E.C) o culto a Asherah esteve
presente “todavia, não se apartaram do pecado ao qual a casa de Jeroboão havia arrastado Israel; obstinaram-se nele e até
mesmo o poste sagrado permaneceu de pé em Samaria” (2Rs 13,6). A ruína da
Samaria é então explicada em 2Rs 17,16 porque “rejeitaram os mandamentos de Yahweh seu Deus, fabricaram para si estátuas de metal
fundido, os dois bezerros de ouro, fizeram um poste sagrado, adoraram todo o
exército do céu e prestaram culto a Baal”.
Os redatores bíblicos tinham uma intenção nítida,
contar a história a partir de Yahweh, único Deus,
de tal forma que Asherah de consorte passe a ser
sua rival, ou seja, a elite de escritores bíblicos tinham uma idéia clara
daquilo que Deus deveria ser: único e masculino, Yahweh,
negando assim toda a realidade politeísta em Israel.
Conclusões
Asherah possivelmente era uma Deusa e consorte de Yahweh
no Antigo Israel e não um simples atributo deste. A proibição da Deusa Asherah é fruto de um dado momento histórico de
elaboração e ascensão do monoteísmo javista, onde a
identidade judaica, após a drástica experiência do exílio babilônico
e na tentativa de reorganização da nação, passa a se constituir em torno de
três pilares: um só Deus, um só Povo e uma só Lei. A centralidade em Yahweh se torna um fator
importante de credibilidade e legitimação da nova identidade nacional em
formação, resultado das reformas empreendidas por Esdras
e Neemias. A idolatria se torna então a culpa da
ruína de Israel e neste contexto Yahweh é
triunfante. Isso irá se refletir no conflito que os
textos bíblicos demonstram em relação a Asherah e a
outros Deuses e Deusas, bem como, em relação principalmente às mulheres
estrangeiras.
Podemos claramente perceber que a elaboração e
instituição do monoteísmo não se deu de forma democrática e muito menos
pacífica. A partir de um contexto politeísta, a centralidade em Yahweh é um processo violento, de destruição da cultura
religiosa do outro e da outra, de proibição do diferente, demonizando-o
e tornando-o uma ameaça. Um processo nítido de intolerância religiosa.
A supressão do culto e da imagem da Deusa Asherah
traz consigo conseqüências profundas para as
relações entre os gêneros, afetando
em especial aos corpos das mulheres, que tinham na Deusa uma possibilidade de
representação do feminino no sagrado. A religião judaica vai se constituindo
em torno de um único Deus masculino, legitimando historicamente uma sociedade
patriarcal. Este poder divino imaginado somente como Deus afetou
as mulheres, as crianças, a natureza, pois quase sempre partiu de um
pressuposto de dominação, opressão e hierarquização das relações, tanto
humanas como ecológicas.
Afirmar Asherah como Deusa é polêmico,
mas necessário à religião e à pesquisa bíblica. Dar voz a uma época em que
Deuses e Deusas eram adorados, em que o próprio Yahweh
foi adorado ao lado de Asherah, nos impulsiona a re-pensar não só as relações pré-estabelecidas entre
homens e mulheres, bem como, a própria representação do sagrado estabelecida.
Re-imaginar o sagrado como Deusa é re-imaginar as relações de poder, não numa tentativa de
apagar a presença de Deus e sim de dar espaço ao feminino no sagrado,
novamente o feminino não como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa.
Esta talvez seja
uma grande contribuição da reflexão feminista, que nos desloca e nos provoca
a re-imaginar o sagrado, como possibilidade de re-imaginar a sociedade e as estruturas cristalizadas
secularmente.
Referências
BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus,
2003.
CHRIST, Carol P. Re-imaginando o divino
no mundo como ela que muda. Tradução de Monika Ottermann. Mandrágora. São Paulo, ano XI, nº 11, p. 16-28, 2005.
CROATTO, S. J. A
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(Fonte:http://www.abiblia.org/artigosview.asp?id=80)
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Veja também:
BIBLIA ON-LINE
Orações – pag. 1
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