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LIVROS & LETRAS

 

Fábulas de todos os tempos

 

Fábulas de José Bento Monteiro Lobato (1882 - 1948)

 

 

 Pau de Dois Bicos

 

Um morcego estonteado pousou certa vez no ninho da coruja, e ali ficaria de dentro se a coruja ao regressar não investisse contra ele.

- Miserável bicho! Pois te atreves a entrar em minha casa, sabendo que odeio a família dos ratos?

- Achas então que sou rato? Não tenho asas e não vôo como tu? Rato, eu? Essa é boa!...

A coruja não sabia discutir e, vencida de tais razões, poupou-lhe a pele.

Dias depois, o finório morcego planta-se no casebre do gato-do-mato. O gato entra, dá com ele e chia de cólera.

- Miserável bicho! Pois te atreves a entrar em minha toca, sabendo que detesto as aves?

- E quem te disse que sou ave? - retruca o cínico - sou muito bom bicho de pêlo, como tu, não vês?

- Mas voas!...

- Vôo de mentira, por fingimento...

- Mas tem asas!

- Asas? Que tolice! O que faz a asa são as penas e quem já viu penas em morcego? Sou animal de pêlo, dos legítimos, e inimigo das aves como tu. Ave, eu? É boa...

O gato embasbacou, e o morcego conseguiu retirar-se dali são e salvo.

 

Moral da Estória:


O segredo de certos homens está nesta política do morcego. É vermelho? Tome vermelho. É branco? Viva o branco!

 

A Garça Velha

 

Certa garça nascera, crescera e sempre vivera à margem duma lagoa de águas turvas, muito rica em peixes.

Mas o tempo corria e ela envelhecia. Seus músculos cada vez mais emperrados, os olhos cansados - com que dificuldade ela pescava!

- Estou mal de sorte, e se não topo com um viveiro de peixes em águas bem límpidas, certamente que morrerei de fome. Já se foi o tempo feliz em que meus olhos penetrantes zombavam do turvo desta lagoa...

E de pé num pé só, o longo bico pendurado, pôs-se a matutar naquilo até que lhe ocorreu uma idéia.

- Caranguejo, venha cá! - disse ela a um caranguejo que tomava sol à porta do seu buraco.

- Às ordens. Que deseja?

- Avisar a você duma coisa muito séria. A nossa lagoa está condenada. O dono das terras anda a convidar os vizinhos para assistirem ao seu esvaziamento e o ajudarem a apanhar a peixaria toda. Veja que desgraça! Não vai escapar nem um miserável guaru.

O caranguejo arrepiou-se com a má notícia. Entrou na água e foi contá-la aos peixes.

Grande rebuliço. Graúdos e pequeninos, todos começaram a pererecar às tontas, sem saberem como agir. E vieram para a beira d'água.

- Senhora dona do bico longo, dê-nos um conselho, por favor, que nos livre da grande calamidade.

- Um conselho?

E a matreira fingiu refletir. Depois respondeu.

- Só vejo um caminho. É mudarem-se todos para o poço da Pedra Branca.

- Mudar-se como, se não há ligação entre a lagoa e o poço?

- Isso é o de menos. Cá estou eu para resolver a dificuldade. Transporto a peixaria inteira no meu bico.

Não havendo outro remédio, aceitaram os peixes aquele alvitre - e a garça os mudou a todos para o tal poço, que era um tanque de pedra, pequenininho, de águas sempre límpidas e onde ela sossegadamente poderia pescá-los até o fim da vida.


Moral da Estória:

Ninguém acredite em conselho de inimigo.

 

A Raposa e as Uvas

 

Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de lindos cachos maduros, coisas de fazer vir água na boca. Mas tão altos, que nem pulando.

O matreiro bicho torceu o focinho:

- Estão verdes - murmurou. - Uvas verdes, só para cachorros.

E foi-se.

Nisto, deu o vento e uma folha caiu.

A raposa, ouvindo o barulhinho, voltou depressa, e pôs-se a farejar.


Quem desdenha quer comprar.

 

 

As Duas Cachorras

 

Moravam no mesmo bairro. Uma era boa e caridosa; outra, má e ingrata.

A boa, como fosse diligente, tinha a casa bem arranjadinha; a má, como fosse vagabunda, vivia ao léu, sem eira nem beira.

Certa vez... a má, em véspera de dar cria, foi pedir agasalho à boa:

- Fico aqui num cantinho até que meus filhotes possam sair comigo. É por eles que peço...

A boa cedeu-lhe a casa inteira, generosamente.

Nasceu a ninhada, e os cachorrinhos já estavam de olhos abertos quando a dona da casa voltou.

- Podes entregar-me a casa agora?

A má pôs-se a choramingar.

- Ainda não, generosa amiga. Como posso viver na rua com filhinhos tão novos? Conceda-me um novo prazo.

A boa concedeu mais quinze dias, ao termo dos quais voltou.

- Vai sair agora?

- Paciência, minha velha, preciso de mais um mês.

A boa concedeu mais quinze dias; e ao terminar o último prazo voltou.

Mas desta vez a intrusa, rodeada dos filhos já crescidos, robustos e de dentes arreganhados, recebeu-a com insolência:

- Quer a casa? Pois venha tomá-la, se é capaz...


Moral da Estória:

Para os maus, pau!

 

 As Duas Panelas

 

Duas panelas, uma de ferro, orgulhosa, outra de barro, humilde, moravam na mesma cozinha; e como estivessem vazias, a bocejarem de vadiação, disse a graúda:

- Bela tarde para um giro pela horta! A cozinheira não está e até que venha, teremos tempo de dizer adeus à alface e fazer uma visita aos repolhos. Queres ir?

- Com todo o prazer! - respondeu a panela de barro lisonjeadíssima de honrosa companhia.

- Dá-me o braço então, e vamo-nos depressa antes que "ela" venha.

Assim fizeram, e lá se foram as duas desajeitadonas gingando os corpos ventrudos, cheias de amabilidade para com as hortaliças.

- Bom dia, dona Couve! Comendador Repolho, como passas! Coentrinho, adeus!

No melhor da festa, porém, a panela de ferro falseou o pé e esbarrou na amiga.

- Ai que me trincas! exclamou esta.

- Não foi nada, não foi nada...

Uns passos a mais e novo choque.

- Ai que desbeiças, amiga!

- Em casa arruma-se, não é nada...

Minutos depois terceiro esbarrão, esse formidável.

- Ai! Ai! Ai! Ai! Fizeste-me em pedaços, ingrata!

E a mísera panela de barro caiu por terra a gemer, reduzida a cacos.

 

 Mal Maior

 

 

- O Sol vai casar-se! - anunciou um bem-te-vi boateiro - viva o Sol!

- Viva? - exclamaram as rãs, assustadas - não diga isso, pelo amor de Deus... Um Sol apenas já nos dá o que fazer. Seca os brejos e nos deixa às vezes a ponto de morrermos de sede. E é um só... imaginem agora que se casa e além do senhor Sol também teremos que aturar dona Sol e os sóis filhinhos... Será a maior das calamidades, porque então unicamente as pedras poderão resistir à fúria da família de fogo.


Moral da Estória:

1. Assim é. O mundo está bem equilibrado e qualquer coisa que rompa a sua ordem resulta em males para os viventes. Fique solteiro o Sol e não enviúve quem é casado.

2. Qualquer mudança pode prejudicar alguém.

 

 

O Burro Juiz

 

Disputava a gralha com o sabiá, afirmando que a sua voz valia a dele. Como as outras aves rissem daquela pretensão, a bulhenta matraca de penas, furiosa, disse:

- Nada de brincadeiras. Isto é uma questão muito séria, que deve ser decidida por um juiz. Canta o sabiá, canto eu, e a sentença do julgador decidirá quem é o melhor artista. Topam?

- Topamos! - piaram as aves - mas quem servirá de juiz?

Estavam a debater este ponto, quando zurrou um burro.

- Nem de encomenda! - exclamou a gralha - está lá um juiz de primeiríssima para julgamento de música, pois nenhum animal possui maiores orelhas. Convidê-mo-lo.

Aceitou o burro o juizado e veio postar-se no centro da roda.

- Vamos lá, comecem! - ordenou ele.

O sabiá deu um pulinho, abriu o bico e cantou. Cantou como só cantam sabiás, garganteando os trinos mais melodiosos e límpidos. Uma pura maravilha, que deixou mergulhado em êxtase o auditório em peso.

- Agora eu! - disse a gralha, dando um passo à frente.

E abrindo a bicanca matraqueou uma grita de romper os ouvidos aos próprios surdos.

Terminada a justa, o meritíssimo juiz deu a sentença:

- Dou ganho de causa à excelentíssima senhora dona Gralha, porque canta muito mais forte que mestre sabiá.


Moral da Estória:

Quem burro nasce, togado ou não, burro morre.

 

 

O Cão e o Lobo

 

Autor : Monteiro Lobato

 

Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão – mas um cão e tanto, gordo, forte, de pelo fino e lustroso.

Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se a ele. A prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: - “Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo”.

O lobo aproximou-se do cão com toda a cautela e disse :

- Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pelo macio! Vê-se que o amigo se trata ...

- É verdade! – respondeu o cão. Confesso que tenho tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma boa vida que levo.

- Como?

- Basta que abandone esse viver errante, esses hábitos selvagens e se civilize, como eu.

- Explique-me lá isso por miúdo, pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos.

- É fácil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, nacos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos a toda hora, palmadas amigas, um nome.

- Aceito! – respondeu o lobo. Quem não deixará uma vida miserável como esta por uma de regalos assim?

- Em troca disso – continuou o cão – você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e à sua família, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos.

- Fechado! resolveu o lobo – e emparelhando-se com o cachorro partiu a caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira.

- Que diabo é isso que você tem no pescoço?

- É a coleira.

- E para que serve?

- Para me prenderem à corrente.

- Então não é livre, não vai para onde quer, como eu?

- Nem sempre. Passo às vezes vários dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem à hora certa?

O lobo entreparou, refletiu e disse:

- Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porém livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço.

Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre.

E afundou no mato.

 

 

O Gato Vaidoso

 

Moravam na mesma casa dois gatos iguaizinhos no pêlo mas desiguais na sorte. Um, amimado pela dona, dormia em almofadões. Outro, no borralho. Um passava a leite e comia em colo. O outro, por feliz, se dava com as espinhas de peixe do lixo.

Certa vez, cruzaram-se no telhado e o bichano de luxo arrepiou-se todo, dizendo:

- Passa ao largo, vagabundo! Não vês que és pobre e eu sou rico? Que és gato de cozinha e eu sou gato de salão? Respeita-me, pois, e passa ao largo...

- Alto lá, senhor orgulhoso! Lembra-te de que somos irmãos, criados no mesmo ninho.

- Sou nobre. Sou mais que tu!

- Em quê? Não mias como eu?

- Mio.

- Não tens rabo como eu?

- Tenho.

- Não caças ratos como eu?

- Caço.

- Não comes rato como eu?

- Como.

- Logo, não passas dum simples gato igual a mim. Abaixa, pois a crista desse orgulho e lembra-te que mais nobreza do que eu não tens - o que tens é apenas um bocado mais de sorte...

 

O Jabuti e a Peúva

 

Brigaram certa vez o jabuti e a peúva.

- Deixa estar! - disse esta furiosa - deixa estar que te curo, meu malandro! Prego-te uma peça das boas, verás...

E ficou de sobreaviso, com os olhos no astucioso bichinho que lá se ria dela sacudindo os ombros.

O tempo foi correndo... o jabuti esqueceu-se do caso; e um belo dia, distraidamente, passou ao alcance da peúva. A árvore incontinenti torceu-se, estalou e caiu em cima dela.

- Toma! Quero ver agora como te arrumas. Estás entalado e, como sabes, sou pau que dura para cem anos...

O jabuti não se deu por vencido.

Encorujou-se dentro da casca, cerrou os olhos como para dormir e disse filosoficamente:
- Pois como eu durmo mais de cem, esperarei que apodreças...


Moral da Estória:

A PACIÊNCIA DÁ CONTA DOS MAIORES OBSTÁCULOS.

 

 

O Macaco e o Coelho

 

 

Um macaco e um coelho fizeram a combinação de um matar as borboletas e outro matar as cobras. Logo depois o coelho dormiu. O macaco veio e puxou-lhe as orelhas.

- O que é isso? - gritou o coelho, acordando num pulo.

O macaco deu uma risada.

- Ah, ah! Pensei que fossem duas borboletas...

O coelho danou com a brincadeira e disse lá consigo:

"Espere que te curo."

Logo depois o macaco se sentou numa pedra para comer uma banana. O coelho veio por trás, com um pau e lept! - pregou-lhe uma grande paulada no rabo.

O macaco deu um berro, pulando para cima duma árvore, a gemer.

- Desculpe, amigo - disse lá embaixo o coelho - vi aquele rabo torcidinho em cima da pedra e pensei que fosse cobra.

Foi desde aí que o coelho, de medo do macaco vingar-se, passou a morar em buracos.

 

 

O Rabo do Macaco

 

Era um macaco que resolveu sair pelo mundo a fazer negócios. Pensou, pensou e foi colocar-se numa estrada, por onde vinha vindo, lá longe, um carro de boi. Atravessou a cauda na estrada e ficou esperando.

Quando o carro chegou e o carreiro viu aquele rabo atravessado, deteve-se e disse:

- Macaco, tire o rabo da estrada, senão passo por cima!

- Não tiro! - respondeu o macaco - e o carreiro passou e a roda cortou o rabo do macaco.

O bichinho fez um barulho medonho.

- Eu quero o meu rabo, eu quero o meu rabo ou então uma faca!

Tanto atormentou o carreiro que este sacou da cintura a faca e disse:

- Tome lá, seu macaco dos quintos, mas pare com esse berreiro, que está me deixando zonzo.

O macaco lá se foi, muito contente da vida, com a sua faca de ponta na mão.

- Perdi meu rabo, ganhei uma faca! Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!

Seguiu caminho.

Logo adiante deu com um tio velho que estava fazendo balaios e cortava o cipó com os dentes.

- Olá amigo! - berrou o macaco - estou com dó de você, palavra! Tome esta faca de ponta.

O negro pegou a faca mas quando foi cortar o primeiro cipó a faca se partiu pelo meio.

O macaco botou a boca no mundo - eu quero, eu quero minha faca ou então um balaio!

O nefro, tonto com aquela gritaria, acabou dando um balaio velho para aquela peste de macaco que, muito contente da vida, lá se foi cantarolando:

- Perdi meu rabo, ganhei uma faca; perdi minha faca, pilhei um balaio! Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!

Seguiu caminho.

Mais adiante encontrou uma mulher tirando pães do forno, que recolhia na saia.

- Ora, minha sinhá - disse o macaco, onde já se viu recolher pão no colo? Ponha-os neste balaio.

A mulher aceitou o balaio, mas quando começou a botar os pães dentro, o balaio furou.

O macaco pôs a boca no mundo.

- Eu quero, eu quero o meu balaio ou então me dê um pão.

Tanto gritou que a mulher, atordoada, deu-lhe um pão. E o macaco saiu a pular, cantarolando:

- Perdi meu rabo, ganhei uma faca; perdi minha faca, pilhei um balaio; perdi meu balaio, ganhei um pão. Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!

E lá se foi muito contente da vida, comendo o pão.

 

 

Os Animais e a Peste

 

Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, mais apreensivo, consultou um macaco de barbas brancas.

- Esta peste é um castigo do céu - respondeu o macaco - e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.

- Qual? - perguntou o leão.

- O mais carregado de crimes.

O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa, disse aos súditos reunidos em redor:

- Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o acrifício necessário ao bem comum.

A raposa adiantou-se e disse:

- Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. São coisas que até que honram o nosso virtuosíssimo rei Leão.

Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.

Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se de mil crimes, mas a raposa mostra que também ele era um anjo de inocência.

E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.

Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:

- A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve da horta do senhor vigário.

Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra:

- Eis amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.

Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimamente eleito para o sacrifício.


Moral da Estória:
Aos poderosos, tudo se desculpa...
Aos miseráveis, nada se perdoa.

 

 

Os Dois Burrinhos

 

Muito lampeiros, dois burrinhos de tropa seguiam trotando pela estrada além. O da frente conduzia bruacas de ouro em pó; e o de trás, simples sacos de farelo. Embora burros da mesma igualha, não queria ser o primeiro que o segundo lhe caminhasse ao lado.

- Alto lá! - dizia ele - não se emparelhe comigo, que quem carrega ouro não é do mesmo naipe de quem conduz feno. Guarde cinco passos de distância e caminhe respeitoso como se fosse um pajem.

O burrinho do farelo submetia-se e lá trotava, de orelhas murchas, roendo-se de inveja do fidalgo...

De repente...

Osh! Oah! São ladrões da montanha que surgem de trás de um tronco e agarram os burrinhos pelos cabrestos.

Examinam primeiramente a carga do burro humilde e, - Farelo! - exclamaram desapontados - o demo o leve! Vejamos se há coisa de mais valor no da frente.

- Ouro, ouro! - gritam, arregalando os olhos. E atiram-se ao saque.

Mas o burrinho resiste. Desfere coices e dispara pelo campo afora. Os ladrões correm atrás, cercam-no e lhe dão em cima, de pau e pedra. Afinal saqueiam-no.

Terminada a festa, o burrinho do ouro, mais morto que vivo e tão surrado que nem suster-se em pé podia, reclama o auxílio do outro que muito fresco da vida tosava o capim sossegadamente.

- Socorro, amigo! Venha acudir-me que estou descadeirado...

O burrinho do farelo respondeu zombeteiramente:

- Mas poderei por acaso aproximar-me de Vossa Excelência?

- Como não? Minha fidalguia estava dentro da bruaca e lá se foi nas mãos daqueles patifes. Sem as brucas de ouro no lombo, sou uma pobre besta igual a você...

- Bem sei. Você é como certos grandes homens do mundo que só valem pelo cargo que ocupam. No fundo, simples bestas de carga, eu, tu, eles...

E ajudou-o a regressar para casa, decorando, para uso próprio, a lição que ardia no lombo do vaidoso.

 

Os Dois Ladrões

 

Dois ladrões de animais furtaram certa vez um burro, e como nõa pudessem reparti-lo em dois pedaços surgiu a briga.

- O burro é meu! - alegava um - o burro é meu porque eu o vi primeiro...

- Sim - argumentava o outro - você o viu primeiro; mas quem primeiro o segurou fui eu. Logo, é meu...

Não havendo acordo possível, engalfinharam-se, rolaram na poeira aos socos e dentadas.

Enquanto isso um terceiro ladrão surge, monta no burro e foge a galope.

Finda a luta, quando os ladrões se ergueram, moídos da sova, rasgados, esfolados...

- Que é do burro? Nem sombra! Riam-se - risadinha amarela - e um deles, que sabia latim, disse:

- Inter duos litigantes tertius gaudet.

Que quer dizer: quando dois brigam, lucra um terceiro mais esperto.