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LIVROS & LETRAS

 

Fábulas de todos os tempos

 

Fábulas de La Fontaine (Século XVII)

 

 

 A Águia e o Escaravelho

 

Uma lebre corria a não mais poder em direção à sua toca, fugindo à perseguição da águia. E em sua desabalada carreira, passou pela casa do escaravelho. Não era propriamente uma casa de segurança, mas, na falta de algo melhor, resolveu a fugitiva homiziar-se lá mesmo.

Já se precipitava a águia sobre a frágil guarida, quando o escaravelho, com intenção de salvar a agora sua protegida, postou-se lhe no caminho, dizendo:

- Poderosa princesa dos ares, em presa fácil será para Vossa Majestade apoderar-se daquela infeliz, o que muita tristeza me dará. Tende compaixão e não façais este ato, que em nada dignificará vosso nome, visto ser tão insignificante o adversário. Mais disso, a lebre minha hóspede, e em nome de Júpiter vos solicito que observeis as leis da hospitalidade. Poupar-lhe a vida, eu vos imploro. Ela, além de ser minha vizinha, é também minha comadre.

A gigantesca ave de Júpiter, como resposta, bate violentamente com a asa no escaravelho, derrubando-o na terra, para fazê-lo calar-se, e leva-se aos ares carregando em suas garras prisioneira a pequena lebre.

O escaravelho, enfurecido com o tratamento recebido, vôa até o ninho da águia e, aproveitando-se de momento em que ela se ausentara, rompe a frágil casca de seus ovos, que era toda a sua esperança de constituir família. E tal era a alegria do escaravelho, que em sua vingança não deixou um ovo sequer inteiro.

Ao retomar ao ninho, a águia, vendo a desgraça que se abatera sobre ela, atroa os ares com seus gritos. Sentia-se impotente para castigar o responsável por aquilo, pois não sabia a quem imputar a culpa. E tal era a sua aflição. Somente os ares eram testemunha de sua agonia. E todo o ano durou a tristeza daquela que vira seus sonhos maternos frustrados.

Após passado esse ano, precavendo-se de funestos acontecimentos, a ave constrói seu ninho em local mais elevado. Mas tudo inútil. O escaravelho o descobre e mais uma vez vaza todos os ovos. A morte da lebre estava vingada mais uma vez. O sofrimento da águia foi tamanho que durante seis meses não cessaram seus gritos. Mas apenas o eco respondia a eles.

Não sabendo mais o que fazer, a ave recorre a Júpiter, que a aconselha a depositar seus ovos numa dobra do seu manto, crendo que em nenhum lugar estariam tão seguros quanto ali, pois ele mesmo, o rei dos deuses, os defenderia.

"Assim" - pensava - "ninguém terá a ousadia de tentar roubá-los."

E estava certa. Ninguém tentou semelhante façanha. Mas isto porque o inimigo mudara seus planos de ataque. Foi sorrateiramente pousar no manto divino, e Júpiter, sacudindo as vestes para dali expulsar o intruso, fez rolar os ovos.

Ao tomar conhecimento do sucedido, a águia ameaçou o deus de abandonar sua corte, indo viver solitária no deserto, dizendo outras impertinências semelhantes.

Não se dignou Júpiter responder-lhe. Limitou-se a intimar o escaravelho a comparecer ao tribunal, onde iria ser julgado. Este contou todo o caso, desde o início, e defendeu sua causa.

Convencido de que a águia não tinha razão, o rei dos deuses tentou fazê-la reconciliar-se com o escaravelho. Mas debalde. Os inimigos não se viam com bons olhos. Então, para acomodar a situação, resolveu a divindade mudar a época em que a águia põe seus ovos, fazendo-a coincidir com a estação em que o escaravelho, resguardando-se dos rigores do inverno, enfia-se na terra, como a marmota.

A Raposa e a Cegonha

 

Quis a raposa matreira,
Que excede a todas na ronha,
Lá por piques de outro tempo,
Pregar um ópio à cegonha.

 

Topando-a, lhe diz: "comadre,
Tenho amanhã belas migas,
E eu nada como com gosto
Sem convidar as amigas.


De lá ir jantar comigo
Quero que tenha a bondade;
Vá em jejum porque pode
Tirar-lhe o almoço a vontade."


Agradeceu-lhe a cegonha
Uma of'renda tão singela,
E contava que teria
Uma grande fartadela.


Ao sítio aprazado foi,
Era meio-dia em ponto,
E com efeito a raposa
Já tinha o banquete pronto.


Espalhadas num lajedo
Pôs as migas do jantar,
E à cegonha diz: "comadre,
Aqui as tenho a esfriar.


Creio que são muito boas -
Sans façon - vamos a elas."
Eis logo chupa metade
Nas primeiras lambidelas.


No longo bico a cegonha
Nada podia apanhar;
E a raposa em ar de mofa,
Mamou inteiro o jantar.


Ficando morta de fome,
Não disse nada a cegonha;
Mas logo jurou vingar-se
Daquela pouca vergonha.


E afetando ser-lhe grata,
Disse: "comadre, eu a instigo
A dar-me o gosto amanhã
D'ir também jantar comigo."


A raposa labisqueira
Na cegonha se fiou,
E ao convite, às horas dadas,
No outro dia não faltou.


Uma botija com papas
Pronta a cegonha lhe tinha;
E diz-lhe: "sem cerimônia,
A elas, comadre minha."


Já pelo estreito gargalo
Comendo, o bico metia;
E a esperta só lambiscava
O que à cegonha caía.


Ela, depois de estar farta,
Lhe disse: "prezada amiga,
Demos mil graças ao céu
Por nos encher a barriga."


A raposa conhecendo
A vingança da cegonha,
Safou-se de orelha baixa,
Com mais fome que vergonha.


Enganadores nocivos,
Aprendei esta lição.
Tramas com tramas se pagam,
Que é pena de Talião.


Se quase sempre os que iludem
Sem que os iludam não passam,
Nunca ninguém faça aos outros
O que não quer que lhe façam.

 

Jean de La Fontaine

 

A Águia e o Mocho

 

 

Puseram termo águia e mocho
As antigas dissensões,

A ponto de se abraçarem
Em cordiais efusões.


Ao firmar os compromissos
Um invoca a fé real,
Outro os foros comprovados
De môcho honrado e leal.


Por juramento prometem
Poupar mutuamente os ninhos.
Pergunta o pássaro triste:
"Conheceis os meus filhinhos?"


"nunca os vi (volve a rainha)".
Torna a ave de Minerva:
"Ai de mim, míseros filhos,
Que sorte céu vos reserva!


Só poderão por milagre
Das garras vos escapar,
Sois rainha e os reis só querem
Seus caprichos escutar.


Surdos a nossos reclamos,
Reis e deuses têm por noma
Nivelar tudo, tratando
A todos da mesma forma.


Ái da pele de meus filhos
Se acertardes de encontrá-los!"
"Bem, retoque-lhe a rainha,
Nesse caso é retratá-los,


Ou mostrar-m'os; quero vê-los
Para bem os conhecer;
Nem sequer hei de tocá-los;
Nada terão a temer".


"Meus filhinhos (disse o môcho)
São mimosos e bem feitos;
E entre os outros passarinhos
Os mais lindos e perfeitos.


Por estes sinais tão claros
Podereis saber quais são;
Não se vos risque da idéia
Esta fiel descrição;

Pois se a esquecerdes - a Morte,
Por vós própria conduzida,
Pode, o ninho penetrando,
A todos roubar a vida".

Teve o môcho uma ninhada;
E um dia, vindo a sair
Em procura do sustento
Para os filhinhos nutrir;

Noss'águia viu, por acaso,
Nuns penhascos algares
Ou nos vãos de uns velhos muros,
(Não sei em qual dos lugares),

Viu, digo, uns feios mostrengos
Tipo mal afeiçoado,
Ar triste e voz de Megera,
Sobrecenho carregado.

Disse a águia: "não são estes
Os filhos do amigo meu,
Trinquêmo-los". Dito e feito:
Toda a ninhada comeu.


Não se contentam as águias
Com refeições à ligeira;
Esta nos pobres mochinhos
Fez, portanto, razzia inteira.


Quando o môcho, após momentos
No sangrento ninho entrou,
Dos seus diletos filhinhos
Somente os pés encontrou.


Queixa-se a Jove e lhe pede
Puna o pássaro perverso,
Que, salteando-lhe o ninho,
O deixa na dor imerso.


Disse-lhe alguém: "Não te queixes
Senão de ti, ou da lei,
Que rege no mundo a todos
Da humana ou da bruta grei.
Por ela, os que nos semelham
São transuntos de beleza,
Lindos, bem feitos, amáveis,
Primores da natureza.


Disseste que eram teus filhos
Modelos de formosura;
Desconheceu-nos a águia
Naquela ingrata figura".

 

A Assembleia dos Ratos

 

Um gato de nome Faro-Fino fez tais estragos na rataria de uma casa velha que os sobreviventes, sem coragem para saírem das tocas, estavam quase a morrer de fome.

Tornando-se muitíssimo séria a situação, resolveram reunir-se em assembleia para o estudo da questão.

Aguardaram para isso, e certa noite em que Faro-Fino andava pelos telhados, fazendo versos à lua.

- Penso – disse um deles _ que o melhor meio de nos defendermos de Faro-Fino é atando-lhe um guizo ao pescoço. Assim, quando ele se aproximar, o guizo denuncia-o e fugimos a tempo.

Palmas e bravos saudaram a luminosa ideia. O projeto foi aprovado por unanimidade. Só votou contra um rato bastante casmurro, que pediu a palavra e disse:

- Está tudo muito certo. Mas quem vai amarrar o guizo ao pescoço de Faro-Fino?

Silêncio geral. Um desculpou-se por não saber dar nós. Outro, porque não era tolo. Todos, porque não tinham coragem.

E a assembleia dissolveu-se no meio de geral consternação.

 

  A Carangueja e a Filha

 

Madre Carangueja, um dia,
Dizia à filha sua:
"Que andar, meu Deus, é esse?
Por que não vais direito?"

"- Ó mãe, vós como ides?
Andarei eu dif'rente
Que anda a nossa família?
Querer que eu ande direita
Quando andam todos tortos!..."
Razão tinha. É geral o poderio
Do doméstico exemplo.

A Cigarra e a Formiga

 

Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.


Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.


Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o acesso estio.


"Amiga" - diz a cigarra -
"Prometo, à fé d'animal.
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal."


A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta:
"No verão em que lidavas?"
A pedinte ela pergunta.


Responde a outra: "eu cantava
Noite e dia, a toda hora."
"- Oh! Bravo!" - torna a formiga -
"Cantavas? Pois dança agora!"

 

A Cotovia e os Filhos

 

Uma idosa cotovia,
Na meiga flórea estação,
Foi mais tardia que as outras
Na sua propagação;
Entre um pingue seara;

Que estava quase madura,
Tinha arranjado o seu ninho
E feito a sua postura;

Já pelos ares se viam

De novas aves cardumes,
E inda os filhos da ronceira
Estavam todos implumes.

Já seca a seara estava,

E o dono da sementeira,
Vindo vê-la com seus filhos
Lhes falou desta maneira:

"Amanhã começaremos

A ceifar os nossos trigos,
Convidai para ajudar-nos
Todos os nossos amigos."

Foram-se; e pode julgar-se

Que susto não sofreriam
Os passarinhos infaustos,
Qu'ainda voar não podiam.

Quando a mãe veio de fora,


Disseram-lhe entre alaridos:
"Não sabe, ó mãe, o que vai?
Não sabe? - estamos perdidos!


Foi o dono destes pães


Seus amigos convidar,
Para amanhã muito cedo
A ceifa principiar.

- Os seus amigos; disse ela,


A vossa agonia é vã,
Sossegai, dormi tranquilos;
Que se não ceifa amanhã."


Assim foi; que no outro dia


Os amigos não chegaram,
Que dando ao velho desculpas
Cortezmente se escusaram.

Voltou no dia seguinte


O dono, e entrou a dizer:
"Nossos amigos faltaram,
E os trigos vão-se perder.

Para amanhã começarmos,


Ide, ó filhos, diligentes,
Dizer que venham com foices
Todos os nossos parentes."


Novos sustos, novas ânsias


Os passarinhos tiveram,
E apenas a mãe chegou,
Logo tudo lhe disseram.

"Ele convida os parentes!"


Disse a esperta cotovia, -
"Pois sabei qu'inda amanhã
A ceifa não principia."


Passou-se a manhã, e a tarde,


E nenhum apareceu,
Respondendo que deviam
Primeiro ceifar o seu.


Então, no outro dia, o dono


Disse: "em nós só confiemos,
Eu, e vós, e os nossos moços
Amanhã começaremos;


Ide, ó filhos, comprar foices


Hoje mesmo no mercado,
Que espero, que em breve,
Vejamos tudo ceifado."


Quando a cotovia esperta


Viu esta resolução,
Disse: "ó filhos, logo, e logo,
Deixar esta habitação!"


Prontamente os filhos todos


Cuadas e voltas dando,
Atrás da mãe aos saltinhos
Se foram logo safando.

Em menos de três semanas,


Até sem muita canseira,
Estava já debulhado
O trigo dentro da eira.


O velho então conheceu,


Vencendo sua demanda,
A força deste ditado:
Quem quer vai, quem não quer manda.

 

    A Galinha dos Ovos de Ouro

 

Tudo perde a Avareza 
Quando quer ganhar tudo. 
Para abono, só tomo essa Galinha 
Fabulosa, que punha os ovos de ouro.

 

Crendo o dono que tinha 
No ventre dela um tesouro, 
Matou-a, abriu-a, e viu-a igual as outras, 
Que ovos comuns lhe punham. - Defraudou-se

 

Do melhor bem que tinha 
Que lição para Mirras! 
N'esta era o vimos. Pobres d'ontem a hoje, 
Por sôfregos de ser, d'um pulo, ricos.

 

A Lebre e a Perdiz

 

Dos miseráveis
Nunca zombeis.
Quem diz que sempre
Feliz sereis?


Mais de um exemplo
Do sábio Esopo
Conspira em prova
Do nosso escopo.


O que em meus versos
Agora cito
Foi noutros termos
Por ele escrito.


Tinham num campo
Lebre e perdiz
(Ao que parece)
Vida feliz.


Uns cães se achegam
Do lar tranquilo;
Vai longe a lebre
Buscando asilo.


Perde-lhe o rasto
Toda a matilha,
E nem Lindóia
Lhe dá na trilha.


De quente corpo
A emanação
Ao faro a indica
De um fino cão.


Filosofando,
Nelusco arteiro,
Conhece a lebre
Só pelo cheiro.


No encalço aperta
Da fugitiva;
Não quer que a presa
Lhe escape viva.


"A caça foi-se
(Diz Carabi);
Acreditai-me;
Nunca menti".


Cansada, a lebre
Fugiu, correndo;
Ao pé da furna
Caiu, morrendo.


Diz, por motejo,
A companheira:
"Pois não campavas
De ser ligeira!


Teus pés velozes
Pra que prestaram
Se dos molossos
Te não livraram?"

Enquanto zomba
Da desgraçada
Dá-lhe a matilha
Rude assaltada.

Fia das asas
O salvamento.
Louca esperança!
Vão pensamento!


Do açor as garras,
Mísera, esquece!
Mal ergue o vôo,
Nelas perece.

 

A Lebre e a Tartaruga

 

"Apostemos, disse à lebre
A tartaruga matreira,
Que eu chego primeiro ao alvo
Do que tu, que és tão ligeira!"
Dado o sinal da partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar.
A lebre, tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De pêta ou de bagatela,
Deita-se, e dorme o seu pouco;
Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;
Eis deita uma vista d'olhos
Sobre a caminhada sôrna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.
Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.
À meta chega primeiro,
Apanha o prêmio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.
Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
Quando não, atrás ficamos.
O contendor não desprezes
Por fraco, se te investir;
Porque um anão acordado
Mata um gigante a dormir.

 

A Morte e o desgraçado

 

 

De feixes de Montano assoberbado

Pobre Matteiro, que co'a carga verga

Vinha gemendo, a passos mal seguros,

Em busca da palhoça fumarenta.

Mais nao podendo já, débil, anciado,

Deita os feixes no chão, recorda penas.

(Mat) Soube eu, desde que hei nascido, o que era gosto?

 

Há quem mais pobre que eu, no mundo seja?

Nunca hora de descanso, e o pão nem sempre!

Mulher, filhos, tributos e soldados

Credor, lavor sem paga

São a pintura cabal d'um desgraçado.

A Morte chama, - e a Morte não remacha; -

Ei-la - a que lhe pergunta:

(Morte) Que desejas de mim?

(Mateiro) Que me ajudes, e muito diligente,

A por-me às costas estes feixes todos...

A Mosca e a Formiga

 

Uma mosca importuna contendia
Com a negra formiga, e lhe dizia:
"Eu ando levantada lá nos ares,
E tu por esse chão sempre a arrastares:
Em palácios estou de grande altura,
Tu debaixo da terra em cova escura:
A minha mesa é rica e delicada;
Tu róis grãos de trigo e de cevada;
Eu levo boa vida, e tu, formiga,
Andas sempre em trabalho e em fadiga.
A formiga lhe disse:

"- Tu me enfadas
Com essas tuas vãs fanfarronadas,
Que te importa que eu ande cá de rastos
Com desprezo das pompas e dos fastos?
Para amparo e abrigo não há prova
De valer mais palácio do que cova.
O palácio é do rei ou da rainha,
E não teu; mas a cova é muito minha;
Eu a fiz com a minha habilidade;
Porventura tens tal capacidade?
Pára aqui! tuas prendas afamadas
Não passam de zunir e dar picadas.
No que toca a comer, os meus bocados
Não me sabem pior que os teus guizados.
Teus lhe chamo? - os que furtas: nesta parte.

Vai comigo, que eu uso da mesma arte;
Porém não vivo em ócio e em preguiça,
Como tu, lambadeira, metediça;
Por isso te aborrecem e te enxotam
Com uma raiva tal, que ao chão te botam.
Fazem-me porventura esse agasalho?
Louvam-me em diligência e em trabalho:
Eu faço para inverno provimento;
Morres nele - ou por falta de alimento,
Ou por vir sobre ti algum nordeste,
Que para a tua casta é uma peste".

 

 

   A Novilha, a Cabra e a Ovelha em sociedade com o Leão

 

Referem autores que em tempos remotos
A mansa oevlhinha, a cabra e a novilha
Ao rei das florestas tomaram por sócio,
De lucros e perdas justando partilha.

Caiu um veado nos laços da cabra;
Reclamam os sócios da prêsa o quinhão,
Então, pelas unhas as contas fazendo,
Em voz rugidora lhes diz o leão;

LEÃO

"Nós quatro é que temos direito à carniça;
(E em quatro pedaços divide o veado).
Eu tomo a primeira por ser soberano;
Ninguém m'a contesta; leão sou chamado.

De pleno direito me cabe a segunda,
- Direito inconcusso que assiste ao mais forte.
Por ser mais valente reclamo a terceira;
Se alguém quer a quarta, castigo-o de morte."

 

A Panela de Ferro e a Panela de Barro

 

Panela de ferro propôs à de barro
Que juntas fizessem pequena excursão;
Mas esta escusou-se, julgando prudente
Ficar no seu posto, juntinho ao fogão.


"Um toque (diz ela) reduz a pedaços
Meu todo argiloso, tão frágil e inerme;
No entanto, a senhora não teme os embates,
Pois é protegida de rija epiderme."


PANELA DE FERRO


"Prometo-te amparo; irei afastando
Os corpos que danos te possam causar;
Porei de permeio, passando por eles,
Meu bojo que o embate lhe dá de afrontar."


Tentada da oferta, panela de barro
Ao lado da sócia começa a jornada;
Três pés arrastando, coxeiam, tropicam,
E - tem-te, não caias - lá vão pela estrada.


Encontram-se, esbarram a cada momento,
Sofrendo a de barro, que em risco se viu;
Mal andam cem passos, ao muito, a de ferro,
A outra a mil cacos no chão reduziu;


E nem a de barro podia queixar-se.
Do forte a amizade não queiras jamais;
Aos grandes ligado terás esta sorte:
Procura os amigos no rol dos iguais.


Moral da Estória:
Nunca se ligue o fraco ao poderoso, mas somente entre iguais deve procurar companhia, pois o fraco sucumbe sempre ao forte.

 

 

A Pomba e a Formiga

 

Enquanto a sede uma pomba
Vê por um triste desastre
Cair n'água uma formiga.
Naquele vasto oceano
A pobre luta, e braceja,
E vir à margem da fonte
Inutilmente deseja.
A pomba, por ter dó dela,
N'água uma ervinha lhe lança;
Neste vasto promontório
A triste salvar-se alcança.
Na terra a põe uma aragem;
E livre do precipício,
Acha logo ocasião
De pagar o benefício.
Que vê atrás de um valado,
Já fazendo à pomba festa,
Um descalço caçador,
Que dura farta lhe assesta.
Supondo-a já na panela,
Diz: "Hei de te hoje cear!"
Mas isto a formiga astura
Lhe morde num calcanhar.
Sucumbe à dor, torce o corpo,
Erra o tiro, a pomba foge;
Diz-lhe a formiga: "Coitado!
Foi-se embora a ceia de hoje!"
De boca aberta ficando,
Conhece pois o pobre glutão
Que só devemos contar
Com o que temos na mão.
E posto enfim que haja ingratos,
Notar devemos também,
Que as mais das vezes no mundo
Não se perde o fazer bem.

 

A Porca, a Cabra e o Carneiro

 

Uma cabra, um carneiro e um porco gordo,
Juntos num carro, iam à feira. Creio
Que todo meu leitor será de acordo
Que não davam por gosto esse passeio.


O porco ia em grandíssimo berreiro
Ensurdecendo a gente que passava;
E tanto um como outro companheiro
Daquela berraria se espantava.


Diz o carneiro ao porco: - Por que gritas,
Animal, inimigo da limpeza?
Por que, trombudo bruto, não imitas
Dos companheiros teus a sisudeza?


- Sisudos, dizes?!... Quer-me parecer
Que não têm a cabeça muito sã
Porque pensam que apenas vão perder,
A cabra o leite, o companheiro a lã.


Mas eu, que sirvo só para a lambança,
Envio um terno adeus ao meu chiqueiro...
Pois cuido que à goela já me avança
O agudo facalhão do salsicheiro!


Pensava sabiamente este cochino,
Mas pra que, pergunto eu? Se o mal é certo,
É surdo as nossas queixas o destino;
E o que menos prevê é o mais esperto.

 

A Rã e o Boi

 

Num prado uma rã
Um boi contemplou,
E ser maior que ele
Vaidosa intentou.


A pele enrugada
Inchando alargou,
E às leves irmãs
Assim perguntou:


- Maior que o Boi
Ó Manas, já sou?
- Não és, lhe disseram,
E a rã lhes tornou,


- E agora ainda não?
E mais ainda inchou;
Eis logo de todas
Um não escutou.


Inchar-se invejosa
De novo buscou,
Mas dando um estouro
A vida acabou.


Também, se em grandeza
Vencer procurou
O pobre ao potente
Por força estourou.

 

 

A Rã e o Rato

 

Quem quer embaçar os outros
Muita vez fica embaçado;
Afirmando esta sentença
Merlim foi inspirado.


Um rato, a estourar de gordo,
Pois quaresmas não guardava,
À margem de uma lagoa
Seus pesares espalhava.


Certa rã se lhe aproxima
E lhe diz no seu calão;
"Vinde a casa visitar-me;
Dar-vos-ei uma função!"


O rato aceita, de pronto,
Sem cerimônia fazer;
As vantagens do passeio
Põe-se a rã a encarecer.


Narra as delícias do banho,
Os prazeres da viagem,
Raridades da lagoa
E a pitoresca paisagem.


"Contareis aos netos (disse)
Qual da lagoa a pragmática,
E a política da terra,
Onde reina a gente aquática."


Mas... surgia um embaraço;
- O rato pouco nadava,
E, para sulcar as águas,
De ajudante precisava.


Eis à rã um meio acode:
O pé do rato ligou
A seu pé, com certo junco,
Que ali mesmo deparou.


Logo que a boa comadre
Sai da margem, a nadar,
Ao fundo dágua forceja
O seu hóspede arrastar.


Contra a santa fé jurada,
Contra o Direito das Gentes,
Quer matá-lo e já supunha
Trincá-lo assado entre os dentes.


Ouvindo-a invocar os numes,
Dele a pérfida escarnece:
Ele resiste; ela puxa;
E o rato já desfalece.


Pairava um milhafre e, vendo
O rato que se debate,
Sobre o mísero do chôfre,
Veloz, qual seta, se abate;


Arrebata-o pelos ares
E com ele a rã também;
Pois, ligada ao pé do rato,
Pelo junco ela se atém.


Garboso dessa caçada,
A presa dupla alardeia.
Contente de haver pilhado
Peixe e carne para a ceia.


Pode um bem forjado embuste
Prejudicar o embusteiro;
Muiras vezes o feitiço
Vira contra o feiticeiro.

 

A Rã que queria ser grande como o Boi

 

Certa rã viu um boi e impressionou-se com seu belo porte. Envergonhada com seu minúsculo tamanho, pretendeu encher-se de ar, até igualar o tamanho do grande animal, objeto de sua admiração.

Envaidecida, disse as suas companheiras:

- Vejam, irmãs, estou ficando grande? Já igualei meu tamanho ao do boi?

- Não! - responderam.

- E agora?

- Ainda não.

- Agora, penso que consegui...

- Ainda está muito longe!

A rã, então, foi inflando-se, cada vez mais, até que sua pele, não mais resistindo, se arrebentou.


Moral da Estória:

O mundo está cheio de gente assim. O escravo quer ser rei, o plebeu quer ser nobre, o pobre quer ser rico, e todos, as vezes, têm o mesmo fim da rã.

 

 

  A Raposa, as Moscas e o Ouriço

 

Deixando pelo chão rastros do próprio sangue,
Uma astuta raposa audaz, que outrora fora
Enérgica, sutil, leve, jazia agora,
Sobre um monte de lama, inanimada e exangue.
Tinha-a ferido em cheio um caçador valente...
E a Mosca, a parasita alado do monturo,
Vinha alegre, num vôo enérgico e seguro,
Cevar-se no seu corpo ainda vivo e quente.
E o mísero animal, com as pupilas foscas,
Invectivava triste o seu terrível norte,
Por lhe ter conferido a desgraçada sorte
De, com seu próprio corpo, alimentar as moscas.
"Fazerem-me sofrer assim um tal vexame,
A mim, ao mais sutil vivente das florestas!
Quando é que uma raposa alimentou as festas,
Os banquetes cruéis de esfomeado enxame?!
De que me serve a cauda? Acaso é um fardo antigo,
Inútil? Ah! que o céu to pague, Mosca bruta!
Vai cevar noutro corpo a tua fome astuta,
E deixa só ficar a minha dor comigo."
Nesta mesma ocasião, um ouriço piedoso


Quis livrá-la, com dó, dos animais perversos
Que afligiam assim, e disse-lhe, bondoso:
"Raposa amiga, espera um só instante apenas...
Com meus espinhos bons eu mato-as num momento;
Vais ver como te vou tirar o sofrimento,
Como te vou tirar essas horríveis penas."
" - Não quero, respondeu, não as enxotes, deixa...
Oh! deixa-as acabar o seu furor nefando...
Quase estão fartas já... Viria um outro bando,
Que teria mais fome, e eu mais razão de queixa."
Assim é esta vida e tudo neste mundo.
Desde a negra miséria aos grandes resplendores;
Ministros, cortesãos... são todos comedores,
Todos têm consigo o mesmo mal profundo.
Este apólogo audaz foi aplicado ao homem;
Aristóteles fê-lo e tinha-o como certo;
Exemplos destes há imensos e bem perto...
Quanto mais cheios, mais saciados, menos comem.

 

O Burro vestido com a pele do Leão

 

Quebrando a peia,
Fôfo sendeiro
Que era moleiro;
Dentro de um bosque,
O fanfarrão
Achou a pele
D'alto leão;
Em toda a parte
Dela vestido,
Por leão fero
Era temido;
Homens e brutos
O respeitavam,
Fugiam logo
Que o divisavam:
Mas das orelhas
Uma pontinha
De fora ao burro
Ficado tinha;
Foi visto acaso
Pelo moleiro;
Que julgou logo
Ser o sendeiro;
Indo-lhe ao lombo
Com um cajado,
Puniu o arrojo
Do mascarado;
Do tolo rindo,
Despiu-lhe a pele,
Pôs-lhe uma albarda
E montou nele.
Tal entre os homens
Mil se conhecem,
Os quais são uns,
E outros parecem,
Despem-lhe a pele
Que os faz troantes,
Ficam sendeiros
Como eram dantes.

 

A Raposa e as Uvas

 

Contam que certa raposa,
Andando muito esfaimada,
Viu roxos maduros cachos
Pendente de alta latada.


De bom grado os trincaria,
Mas sem lhes poder chegar,
Disse: "estão verdes, não prestam,
Só cães os podem tragar!"


Eis cai uma parra, quando
Prosseguia seu caminho,
E crendo que era algum bago,
Volta depressa o focinho.

Moral da Estória:


Quem desdenha quer comprar.

 

 

A Raposa e o Bode

 

O capitão raposo
Ia caminho ao lado
De seu amigo bode,
D'alta armação dotado.


Este não via um palmo
Diante do nariz;
Era formado aquele
Nas burlas mais sutis.


Ungidos pela sede,
Lograram penetrar
Num poço, cujas águas
Sorveram a fartar.


Disse o raposo ao bode:
"O que fazer agora?
Beber não foi difícil;
E sim vir para fora.


As tuas mãos e pontas
Ergue, compadre, acima,
E o corpo sobre o muro
Solidamente arrima.


Subindo por teu lombo,
Trepando na armação,
Alcançarei a borda,
A fim de dar-te a mão."


BODE
"Por minhas barbas, digo:
Podes ficar ufano!
Jamais eu descobrira
Tão engenhoso plano.


"Safando-se o raposo,
O bode lá deixou;
E sobre a paciência
Este sermão pregou:


RAPOSA
"Se Deus te dera tino
Em dose, à barba igual,
De certo não caíras
Em arriosca tal.

O caso é que estou fora!
E pois, compadre, adeus!
Livra-te desse apuro,
Dobrando esforços teus.


Veda negócio urgente
Que eu possa ter valer."


Quem entra numa empresa
O fim deve prever.

 

A Raposa e o Busto

 

Era um busto famoso, um todo teatral...
Por entre a multidão, o burro, esse animal
Que não sabe julgar senão as aparências,
Gabava da escultura as raras excelências.


A raposa, porém, um tanto mais sabida,
Aproxima-se e diz:
"Não vi, por minha vida,
Cabeça tão perfeita!... É mágoa verdadeira
A falta que lhe faz lá dentro a mioleira!"
Aos centos, pelo mundo, os homens conto
Que são bustos perfeitos neste ponto.

 

 

A Raposa e o Esquilo

 

Dos miseráveis não se deve escarnecer:
Quem pode assegurar que só feliz vai ser?
Nas fábulas do sábio Esopo, mais
De um exemplo nos vem de casos tais.
Certa história, em vez deles, me parece
Que lição mais autêntica oferece.
A raposa do esquilo escarnecia,
Vendo-o assaltado por feroz tormenta.
- Eis-te no esquife quase a repousar - dizia -
Em vão tentas cobrir com a cauda o rosto.
Quanto mais sobes, mais a borrasca violenta
A seus golpes fatais te encontra exposto.
Ter por vizinho o raio e estar sempre na altura
Quiseste, e foi teu mal. Eu, numa toca obscura,
Posso rir-me e esperar que sejas feito pó."
Nossa raposa, enquanto assim se vangloriava,
Muitos pobres franguinhos devorava
De uma dentada só.
Por fim, do irado céu tem o esquilo perdão:
O relâmpago cessa, emudece o trovão,
Dissipa-se a tormenta e retorna a bonança.
E um caçador, havendo descoberto
Os rastros da raposa, diz: "por certo,
Meus frangos vais pagar!"
Numerosos sabujos logo lança,
Que a vão do seu covil desalojar.
Vê-a o esquilo fugir, veloz, à frente
Da matilha que a acossa ferozmente.
Sentir prazer gratuito poderia,
Ao se abrirem para ela as portas da agonia;
Mas, vendo-o, não se ri: na mente
Traz restos do susto recente.

 

A Raposa e o Tambor

 

Conta-se que uma raposa esfomeada chegou a um bosque onde, ao lado de uma árvore, havia um tambor, que soava furiosamente cada vez que, ao sopro do vento, os ramos da árvore se moviam e batiam nele. Ao ouvir tal ruído, a raposa dele se aproximou e, já em frente ao tambor, pensou:

"Este deve conter muita carne e muita gordura."

Lançou-se sobre ele e, esforçando-se, conseguiu rompê-lo. Ao ver que era oco, disse:

"Talvez as coisas mais desprezíveis sejam aquelas de maior tamanho e de voz mais forte."

 

A Raposa sem Rabo

 

Uma ladina Raposa
Caiu em certa armadilha,
(Que sempre as tece o Diabo!)
E foi grande maravilha
Ficar apenas sem rabo:


Com tal perda envergonhada,


De a conestar busca a idéia;
E as sócias vendo uma vez
Juntas em grande assembléia,
Lhes disse muito cortês:


- Sabei qu'os cães destes sítios,


- Qu'há dias tenho encontrado
- Por esta campina toda,
- Tem cércio o rabo cortado,
- Que me faz crer qu'isto é moda;


- Se é moda (falo-vos sério)


- Nunca vi cousa mais útil!
- De que serve dizei vós,
- Trazermos um peso inútil
- Pendurado atrás de nós?


- Um rabalhão gadelhudo,


- Que nos faz calma no estio,
- E lá pelo inverno todo
- Nos dobra, e exaspera o frio
- Ou cheio de água, ou de lodo?


- Por tanto eu vos aconselho,


(E deixemos questões fúteis)
- Qu'o rabo cortemos todas;
- Pois quando as modas são úteis,
- É útil seguir as modas.


Uma Doutora do rancho,


Mestra em astúcias antiga,
Lançando-lhe a vista em roda
Lhe diz - Ora aposto, amiga,
- Que tu já usas da moda?


- Deixa ver, dá meia volta,


Eis qu'então a derrabada,
Disfarçar-se não podendo,
Ao som de grande assoada,
Dando à gambias foi correndo.


Que de um delito afrontoso


Em si o ferrete imprime,
Com achar parceiros conta;
Crendo qu'a mancha do crime,
Sendo usual, pouco afronta.

 

A Serpente e a Lima

 

Certo relojoeiro
Duma serpente a vizinhança tinha.
(Que péssima vizinha!)
O réptil, sorrateiro,
Entra-lhe a loja, em busca de guisado,
E à mão só vê, para matar a fome,
Lima d'aço, bem rijo e temperado.
Morde-a, e, qual avestruz, quer ver si a come.
A lima então, sem cólera falando
Diz-lhe: "estulta pareces,
Deste modo atacando
Aquilo que conheces
Ser mais rijo que tu. Antes que possa
Teu esforço um ceitil me destacar;
Antes que eu sofra a mais ligeira móssa,
Hás-de as presas quebrar.
Pascacia! Eu temo só do tempo os dentes,
E não os das serpentes."
Isto que eu disse aqui, leva endereço
Aos espíritos vis que tudo investem.
Bem que, tacanhos, para nada prestem,
Tudo mordem; têm tudo em menosprezo.
Quererdes (parvos!) amolgar co'as presas
Produções imortais do engenho humano,
É vão esforço insano,
A mais louca e irrisória das empresas!
Vossa fúria espumante
Nem a mais leve brecha lhes imprime;
Pois todas têm a têmpera sublime
Do aço fino, do bronze e diamante.

 

A Tartaruga e os Dois Patos

 

Estava enfastiada a tartaruga
Da negra e estreita toca em que vivia,


Por isso, um belo dia,
Apoderou-se dela
O desejo profundo


Do abandono à casa e correr mundo
A todos bem parece a terra estranha,
E sempre foi notória a grande sanha

Que o coxo tem à casa.

A dois patos foi ela então dizer
A viagem que tinha projetado.


Solene, autorizado,
O par lhe respondeu:


"Tens aberto o caminho,
E nós te levaremos
A um sítio que sabemos;


Verás muito país e muitas gentes,
Repúblicas e reinos florescentes.


Terás muito que ver
E muito que aprender.


Ulisses muito aproveitou com isso."


Os dois eram espertos,


E expeditos ao ajuste do serviço,
Que iam prestar à pobre tartaruga.
Foram logo fazer de um pau nodoso


Tirado de uma árvore,
Um engenho famoso,


A fim de transportar a viageira.


Agarra-se cada um


Valentemente a cada extremidade,
E apresentando o meio à tartaruga,
Disseram-lhe, com grande autoridade:
"Ferra aqui e não largues!"
A mísera assim fez,
Sem de leve temer
O que ia suceder
E foram pelos ares...


"Milagre! Gritam todos os que vêem:
Tartaruga voar é caso estranho.
Decerto que tem em si poder tamanho,
Que não cabe no mundo!"


A tartaruga, enfautada e louca,
Para responder vai abrir a boca,


Melhor fôra calada,
Pois logo num momento
Caiu arrebentada,
Aos pés do povo atento.

Vaidade, presunção, muita palavra
Reveladora do apoucado siso,
Tem a mesma origem,
Da mesma fonte brotam.

 

A Torrente e o Rio

 

Com imenso tumulto e estrondo ingente,
Das montanhas se atira uma torrente.
Ante ela tudo foge; o horror segue-lhe os passos;
Tremem, ao vê-la, os campos e os espaços.
Nunca houvera viajante
Que ousasse atravessar barreira tão possante.
Só um, sem mais, remédio, ao ver ladrões,
Põe entre eles e a si os torvos vagalhões.
Eram ameaça apenas; na verdade,
Não tinha o seu clamor qualquer profundidade.
Em nosso homem, que só o pavor sentiu,
Nova coragem o êxito infundiu.
Continuando os ladrões a persegui-lo,
Encontra mais adiante, a vedar-lhe a passagem,
Do sono mais feliz, pacífico e tranquilo.
Bem fácil julga logo a travessia:
Margens lisas, nenhuma escarpa, areia pura.
Nele entra e seu cavalo lhe assegura
Salvação dos ladrões, mas não do abismo; a fria
Onda as águas do Estinge os dois leva a tragar,
Pois ambos, infelizes em nadar,
Vão cruzar, nos domínios de Plutão,
Rios que, dos nossos, bem diversos são.
Homens quietos demais são perigosos;
O mesmo não dá com os espalhafatosos.

 

A Vista de quem é Dono

 

Um tímido veado
Por ímpios cães instado,
Foi num curral de bois
Buscar piedoso abrigo
E escudo ao seu perigo.


Um boi disse: "ó vizinho
Vai, segue o teu caminho,
Melhor asilo busca."
Tornou-lhe o cervo assim:
"Irmão, tem dó de mim!


Lá fora anda um cachorro,
Que se me apanha eu morro!
Aqui ficar me deixa,
Que em prêmio um bom pascigo
Te indicarei, amigo.

"Calou-se o boi, e entanto,
O cervo pôs-se a um canto:
Trouxeram erva os moços,
Entraram e saíram,
E o hóspede não viram.


Já livre se julgava
Do susto que encarava;
Pôs-se a comer no feno,
E junto à manjedoura
Foi rede varredoura!


Um boi lhe disse, então:
"Em risco estás, irmão!
Que esse homem de cem olhos
Não veio ind'hoje aqui!
E a vir, pobre de ti!"


O tímido veado
Foi pôr-se alapardado
Entre uma carga de erva;
E entrou nela a comer
Por tempo não perder.


Chegou pouco depois
O dono a ver os bois,
Dos moços precedido;
E um tanto carrancudo,
Pôs-se a ralhar por tudo;


"Levanta esse aguilhão,
A canga está no chão,
Feno ao mourisco deita;
Parece esta erva pouca,
Aqui há outra boca!"


Deitando ao lado os olhos,
Viu entre os verdes molhos
Um galho da armadura
Do tímido veado,
Que estava acaçapado;


Então lhe disse: "olá!
Você também por cá!
Comendo o pasto aos bois!

Espera!..." E c'um forcado
Deu morte ao malfadado!

Tem mais vista, ou melhor,
Os olhos de um senhor,
Do que os dos seus criados;
Por que o próprio interesse
As vistas esclarece.


Moral da Estória:


Para enxergar bem não há nada como o olhar do próprio dono.

 

As orelhas da Lebre ou a opinião da Corte

 

Cornígero animal feriu co'as pontas
O leão, que em furor todo abrasado
Baniu, para forrar-se a iguais desfeitas,
A todo bicho de armação dotado.


Alces e touros, cabras e carneiros
O beco incontinente despejaram;
A toda a pressa, gamos e veados
Outros lares e climas demandaram.


Vendo a lebre as orelhas pela sombra,
Temeu que alguém, achando-as mui compridas,
Por chifres as tomasse e sem recurso
Fossem, na corte, a chifres reduzidas.


"Vizinho grilho, disse;
Adeus; eu vou-me embora.
Orelhas por chavelhos
Hão de tomar-me agora."


"Chavelhos isto? Cuidas
Que tolo sou? Não vês
Que são boas orelhas,
Tais como Deus as fez?"


Lebre


"Qual! Teimarão ser pontas
E pontas de unicorne;
Posto que são orelhas,
Sempre a dizer-lhes torne.


Razões, protestos, queixas,
Ninguém me há de escutar;
De louca hão-de tratar-me;
No hospício irei parar."

 

    As Rãs e o Sol

 

Querendo o Sol casar-se
As rãs, quando o souberam,
A Júpiter fizeram
Humilde petição,
Dizendo: "Não consintas,
Ó Júpiter sagrado,
Que mude o Sol d'estado,
Que tenha geração;
Porque se ele, sozinho,
Com seu calor intenso
Nos faz um dano imenso
Na cálida estação;
Em tendo esposa e prole,
Seus novos sucessores,
Com férvidos calores
O mundo abrasarão:
Secando-se as lagoas,
As fontes e as correntes,
Aos nossos descendentes
A vida acabarão!" -
Ouvindo Jove as preces,
Negou o consentimento
Do Sol ao casamento,
As rãs em atenção. -
Aquele que previne
Que o mal se reproduza,
Prudente evita e escusa
De horrores profusão.

 

O Burro carregado de esponjas e o Burro carregado de Sal

 

Qual romano imperador,
Um pau por cetro levava
E a dois frisões orelhudos
Um burriqueiro guiava;
Um deles trazia esponjas,
E qual postilhão corria;
O outro de sal carregado
Os pés apenas mexia;
Um sem custo, outro com ele,
Montes e vales andaram,
Até que ao vau de um ribeiro
Ultimamente chegaram.
No que levava as esponjas
O burriqueiro montou,
E fez ir para diante
O que de sal carregou.
Ele o vau desconhecendo
Pregou consigo no pego,
Nadou; veio acima, e viu
Aliviado o carrego:
Porque o sal, de que era a carga,
Derreteu-se n'água entrando,
E o seu condutor, já leve,
Pôs-se em terra e foi trotando.
O camarada esponjeiro,
Que o viu tão leve sair,
Quis à sua imitação
Também no pego cair;

Ei-lo nas águas submerso,
Esponjas e burriqueiro,
Todos três bebendo à larga
Querem secar o ribeiro.
Tão pesadas se fizeram,
Por beberem sem cessar,
Que sucumbindo o jumento,
Não pôde as margens ganhar.
O homem lutava com a morte,
Té que um pastor lhe acudiu;
Mas o burro das esponjas
Foi ao fundo, e não surdiu.
Guiar por cabeças más
Não é um bom portamento;
Às vezes a dita de um
Faz a desgraça de um cento.

 

O Burro e as Relíquias

 

Um burro, de relíquias carregado,
Supunha-se adorado.
Hinos, incensos como seus tomava
E soberbo marchava.


Alguém, que dera fé dessa tolice,
"Mestre burro (lhe disse),
Do espírito bani, por piedade,
Tão estulta vaidade.


Ao santo e não à vossa personagem
Dirige-se a homenagem;
Só às relíquias se dispensa a glória
Essa jaculatória."


De juíz, que não sabe ou não estuda
A toga se saúda.

 

O Burro e o Cão

 

A lei do mútos auxílio é lei antiga e bela


Imposta por Natura.


O burro, com ser burro, andava ao fato dela,
E se em funesto dia a desprezou de vez,


Não sei como tal fez.


Esta justiça devo à boa criatura.
No convívio do cão, seguia de jornada,
Com toda a pacatez e sem pensar em nada.


Tinham o mesmo dono,
O qual, afadigado,
Fez a vontade ao sono,


Veio a talho de foice o caso apropriado,
Pois isto sucedeu, mesmo a meio dum prado
Onde a erva crescia à mão de semear.
O burro, que não era afeito a hesitações,


Pôs-se logo a pastar.


De cardes viu a falta, olhando-a indiferente,
Pois muito bem sabia
Que era ser exigente.


Ele, a gema, o primor dos burros mansarrões,
Negar-se a dispensar, ao menos por um dia,
O freqüente manjar, que ainda o fartaria.

Em mais ocasiões.


Criado em tais doutrinas,


Sabias as paixões más vencer de quando em quando,
E, assim, dizendo adeus às tentações mofinas,

Continuou pastando.

O cão, esse, coitado! À força de jejum
Viu-se obrigado a ter menor filosofia;
Chegou-se ao companheiro e, sem rodeio algum,
Disse-lhe francamente: "amigo, eu tiraria
De certo o meu jantar
Podendo-lhe chegar.


Tenho deveras fome, e a fome é um tormento;
Dá-me um minuto só, faze-me este favor.


Abaixa-te um momento."


O burro, nem palavra. Aquilo, era, talvez,


Ataque de surdez;


Ou estaria pensando, inconscientemente:
Ser caridoso é bom, mas é muito melhor


Calar e ir dando ao dente.


Volvido largo tempo, achou-se mais disposto,


O burro a responder. Vê-se que a digestão


Lhe despertava o gosto,


De dar a taramela. Assim falou ao cão:


"Amigo ouve um conselho;


Deves saber esperar e deves ter paciência.


Lições da experiência
Que eu sei, já por ser velho.
Mais um momento, e breve,


O nosso dono desperta. O seu dormir é leve,
E tão depressa acorde, é ponto certo que há de
Cuidar logo de ti, tratando-te de sorte,


Que fiques como um frade."


Nisto, um lobo feroz, pronunciando morte,


Aparece, esfaimado.
O burro, transtornado,


Aflito, chama o cão e pede que lhe acuda.
Outra vez se repete a mesma cena muda,
Até que o cão responde: "ouve um conselho, amigo:
Deita a fugir depressa, enquanto o nosso dono
Acaba de dormir. Ele tem leve o sono,
E, logo que acordar, acode sem demora


A livrar-te do perigo.
Quem sabe até se agora
Já sonhará contigo?


Bem sabes que o viver tem cenas variadas,
No mundo, anda-se exposto a muitas más venturas;


Se o lobo te apanhar, levanta as ferraduras


E quebra-lhe as queixadas."


Ao burro este aranzel de pouco aproveitou,


Pois, durante o sermão,
O lobo o devorou,
Sem dó nem remissão.
É bom, convém saber,
Uns aos outros valer.


Moral da Estória:


É mister o próximo ajudar.

 

O Burro e o Cãozinho

 

Quem com graça não nasceu
Não se meta a engraçado:
Olhe o caso que se deu
Com certo burro estafado
De trabalho e de pancadas.
Notando quanto estimadas
Eram dum cãozinho as graças,
Que todos delas se riam,
Não atendendo a que as raças
E os tamanhos diferiam,
Na grande sabedoria
De que nascera dotado,
Imaginou que seria
Do mesmo modo estimado.
O momento aproveitando
Em que vê estarem folgando,
Os patrões com o tal cãozinho,
Entra na sala zurrando,
Aos coices e pretendendo
Dar o seu lindo pézinho,
Às caras a pata erguendo.
Imaginem em que estado
Ficaram todos na sala!
Cai a senhora sem fala!
"- Acudam!" gritam, aflitos:
"Acudam já
Com um arrocho!
Que está Danado
O carocho!"
(Por seu preto assim chamado),
Ouvindo tamanhos gritos
De terror,
Um labrego, seu mentor,
Que, dando-lhe a palha e a erva
Não lhe sofria tolices,
Qual a doutora Minerva
Ao filho do sábio Ulisses,
Acabando com as meiguices
Fez calar logo o cantor
E pôs na folia ponto
Com um bom rufo de tambor
No lombo do burro tonto.


Moral da Estória:
Não devemos nunca forçar nossas qualidades ou virtudes.

 

O Burro e o Cavalo

 

Devem-se todos no mundo
Mutuamente auxiliar;
Se morrer o teu vizinho
Hás de o seu fardo agüentar.


A um cavalo pouco amável
Certo burro acompanhava;
O cavalo no costado
Somente arreios levava.


Ao peso de rude carga
Quase o burro sucumbia;
E entre arquejos ao cavalo
Algum auxílio pedia.


"Não é descortes meu rogo
(Dizia ao seu companheiro):
Metade de minha carga
Ser-vos-á fardo ligeiro.


Temo estirar a canela
Antes que chegue à cidade;
De finar-me arrebentado
Livrai-me por piedade."


Seguia o corcel, fazendo
Ouvidos de mercador;
Té que viu morrer o burro
Sob o peso esmagador.


Arrependeu-se, já tarde,
Do recusado conforto,
Pois o colmaram da carga
E mais da pele do morto.

 

    O Burro e seu Dono

 

O burro de um jardineiro
Queixas vivia a fazer,
Porque o forçavam a erguer-se
Mui antes do amanhacer.


"Os galos (dizia ao Fado)
São por aqui matinais;
Mas, por muito que madruguem,
Eu inda madrugo mais.


E a que fim? Para ao mercado
Hortaliças conduzir;
Justo motivo, por certo,
De encurtarem-se o dormir!"


Compadecido da queixa,
Dá-lhe o Fado outro senhor;
Passa o burro dorminhoco
Ao poder de um surrador.


Em breve o peso das peles
E seu cheiro repelente,
Incomodam sobremodo
Nosso burro impertinente.


"De meu senhor jardineiro
(Dizia) tenho saudade;
Ao menos, se bem me lembro,
Me dava mais liberdade.


Se ele virava a cabeça,
Eu, às ocultas, mascava
Alguma folha de couve,
Que nem ceitil me custava.


Mas com este, nem chorume!
E se pinga alguma cousa,
É só música de arrocho
Num triste, que não repousa."


Conseguiu mudar de dono;
A um carvoeiro tocou.
Novas queixas; mas a Sorte,
Acesa em ira, bradou:


"É demais! Pois este burro
Há de estar a importunar-me,
E meu tempo e meu cuidado
Como cem réis ocupar-me!

Pensará que a seus negócios
Devo só dar atenção;
Que é só ele o descontente
Com a sua condição?"


Pensava bem o Destino,
Assim é que somos feitos!
Seja qual for nosso estado,
Nunca estamos satisfeitos.

Que a nossa vida presente
É sempre a pior - julgamos;
Aspirando a melhorá-la,
Com rogos o céu cansamos.


Inda que Jove atendesse
A todos e cada qual,
Inda assim o aturdiria
Queixa e lamúria geral.

 

O Burro vangloriando-se de sua genealogia

 

Jactava-se de nobre
O burro de um prelado,
O sangue azul lembrando
Pelo materno lado.


Nascera de jumenta
De honrosas tradições,
Cujos heróicos feitos
Douraram seus brasões.


Porque fez isto e aquilo,
Cobrindo-se de glória,
Capaz se julga o burro
De figurar na história.


Um dia, em que o bispo
A um médico passou,
De ver-se rebaixado
O parvo se queixou.


Amarram-no a um moinho,
Quando em velhice cai;
Então do fidalgote
Vem à memória o pai.


Se a desgraça somente prestasse
Para em tolos juízos infundir
Inda assim fôra justo dizer-se:
"Que para alguma coisa
Nos pode ela servir."


VARIANTE
Há males que à gente vêm
Somente para seu bem.


Moral da Estória:
Se a desgraça aperfeiçoasse o discernimento dos homens, poder-se-ia considerar, pelo menos, que para algo de bom ela nos serviria.